Pai: Cleudir, mãe: Cilene. Cleucilene veio ao mundo no início da conturbada década de 80. Por preguiça dos pais e uma vizinha mais velha com o mesmo nome, tornou-se simplesmente Creuza. Quando criança, lembra da primeira vez que seus olhos confrontaram-se com o que mais tarde tornaria-se seu consolo em momentos de solidão, fonte de sonhos e fuga da cruel realidade que a cercava, uma TV.
Era uma tarde quente na pacata Areia Branca, ela já era quase uma mocinha, a filha mais velha, do terceiro “casamento” de seu pai. O primeiro triunfo de uma sucessão de 3 abortos, culpa das doenças venéreas que seu pai adquiria constantemente em sua vida desregrada. Os braços do velho, cansado com as cordas da jangada, não mais suportavam o peso dos alqueires de feijão e farinha por isso seu pai achou que Creuza já poderia ser útil e carregar algum peso. No lombo de Quico, o meio de transporte da família de 4 que mais tarde viriam a ser 15, deixou a vila de pescadores e rumou para a feira do município. Seria a primeira vez que Creuza deparava-se com a cidade grande, seu ritmo frenético e centenas de objetos para os quais a pequena lombriguenta nem imaginava que poderia haver tantos nomes. Alguns deles eram enormes, maiores até que a jangada de seu pai, maiores até que a jangada de Buiú, a maior entre todas da pequena vila. Ela nunca havia sentido ganância, talvez nem mesmo hoje saiba o significado dessa palavras, mas pensou que poderia ter um exemplar de todos aqueles objetos. A miséria na qual vivia, porém, sempre fez com que se contentasse com pouco, sobretudo comida. Assim sendo acreditou que nunca poderia ter todos eles, mas pelo menos uma dezena daquelas maravilhas Creuza gostaria de ter.
Ao redor de um desses objetos, pessoas amontoavam-se. O sol ardia forte, atiçava ainda mais os piolhos que naquele início de Novembro pareciam ter atingido o apogeu da infestação. Curiosa com a movimentação de pessoas, Creuza pensou em verificar o que se passava, seria também uma ótima oportunidade de esfriar a moleira e os braços que a esta altura já suportavam alguns quilos de feijão verde, arroz e óleo. A iniciativa foi prontamente rechaçada com um coice de seu progenitor acompanhado de um ríspido “Avia, cabrita!”. Nuca entendera o motivo desse “cabrita”, nem de longe parecia com uma cabra. Creuza continuou caminhando mas seus olhos recusavam-se a deixar aquela aglomeração. Alguns passos mais adiante, uma oferta imperdível de guiné chamou a atenção de Seu Cleudir. Era a oportunidade pela qual Creuza estava esperando. Deixou a sombra do pai enquanto olhava constantemente de canto de olho afim de saber se este notara sua ausência. Meteu-se entre as pernas dos adultos que cercavam o grande objeto e rapidamente chegou à primeira fila.
O aparelho era caprichosamente ordenado com cabides e bombril, Creuza admirou a ornamentação por algum tempo, mais até que a imagem propriamente dita. Se um dia tivesse tantas coisas, Creuza queria ter um enfeite como aquele na sua porta para que todos vissem o quanto ela era caprichosa, ou melhor ainda, no alto de sua rede, para poder dormir olhando para o brilho cinzento que aquilo tinha. Tornou a atenção para as imagens em movimento logo abaixo dos cabides. Por algum motivo pessoas com muita roupa subiam num muro e tentavam derrubá-lo. Era um muro grande e cinza, as pessoas gritavam e dançavam forró. Pareciam estar todos felizes, não deviam gostar daquele muro, por isso fizeram um forró para derrubá-lo. Lembrou-se de algo parecido quando arrancaram um toco de mangueira que ficava perto de sua casa, todos os homens ajudaram com pás e enxadas, depois fizeram uma festa. Foi a primeira vez que ela provou cachaça, teve que fazer isso escondida pois seus pais não deixavam. Não entendia direito, se todos bebem, por que não ela? De qualquer forma, não gostou. Por algum motivo não se recordava muito bem do que se passou depois, mas lembrava muito bem que tinha um gosto amargo e queimava mais que malagueta, de uma forma estranha mas ainda assim queimava muito.
Seus pensamentos foram revirados e interrompidos por um grande cocorote que seu pai lhe dera, bem na hora que levantava o braço na tentativa de coçar a nuca ferozmente atacada pelos piolhos. O movimento dos braços mudava seu c.g. e fazia com que perdesse o equilíbrio, as lombrigas jogadas à frente serviam de contrapeso, poderia facilmente ter ficado de pé não fosse o cocorote. Seu Cleudir estava fumando numa quenga, já procurava por Creuza há alguns minutos por isso deflagara o cocorote mais potente jamais dado, “Avia, Cabrita!”. Creuza foi ao chão juntamento com os sacos e piolhos mas nem chorou, estava acostumada com as punições de seu pai, mesmo com as surras com o chicote de Quico. Recompôs-se em meio aos mais chulos xingamentos do pai, enquanto jurava a si mesma que um dia teria pelo menos uma coisa daquelas, com cabides, bombril e tudo mais. Jurou também que um dia saberia o motivo daquela festa no muro, perguntaria até mesmo a seu Buiú se necessário fosse, mas o tempo encarregou-se de minar essa curiosidade. Agora tinha que pensar como carregaria os quatro guinés que seu pai lhe arremessara na cara.
O primeiro desejo, porém, Creuza realizou. Em partes, é verdade, pois descobrira que os cabides e bombril não eram tão necessários e mudou seu gosto quanto a beleza dos mesmos. Creuza comprou sua primeira TV anos mais tarde, quando já morava numa cidade ainda maior. Longe dos cocorotes de seu pai e do chicote de Quico, Cleucilene foi trabalhar na casa de primos de Seu Buiú, gente muito boa, deram-lhe até um quarto para morar, pena que Xilito, o poodle branco e gasguito da família havia chegado primeiro. Mas deixavam até que ela ficasse com o troco do pão que comprava todas as manhãs. Depois de quase dois anos juntando esse troco, ela pode comprar a antiga TV de seus patrões. Agora era só dela, todas as 14 polegadas, só lhe faltava um botão de volume, mas quem precisa de um botão de volume quando se tem um palito de fósforo?
Através de sua Goldstar, Creuza pôde conhecer melhor o mundo, que era ainda maior que a distância entre Mossoró e Areia Branca. Acompanhava muitas novelas, filmes, só não gostava dos jornais. Além do mais, durante a madrugada, ajudava a abafar o som vindo do quarto dos patrões. Foi por causa de um filme desses que passam tarde da noite que Creuza teve que acordar e lavar seus lençóis escondida pela primeira vez. Demorou duas horas atrás da geladeira para secar. A admiração pelo mundo surreal da TV fez com que Creuza criasse muitos sonhos. O maior deles foi de viver numa outra cidade, longe dos despertar às 5:00 da manhã, dos trocos de pão e sobretudo, longe de Xilito.
Essa cidade chama-se Paris. É bem longe de Areia Branca, mais que Mossoró, na verdade é para o outro lado de Mossoró, entrando no mar, mas não é uma ilha. É tão longe que nem com uma semana de jangada com vento bom você conseguiria chegar. Só dá para ir de avião, e um daqueles bem grande mesmo.
Creuza conseguiu realizar vários de seus sonhos, até mesmo conheceu o Fábio Assunção. Com paris não foi diferente. Não me pergunte como ela chegou aqui, foi uma epopeia, com chifre de mulher em marido, envenenamento de Xilito, um malabarista de circo mal intencionado, obras de esgoto, um vizinho viado com medo de sapo e um repentista cego de um olho dentre outras coisas. Talvez num outro dia, num outro acesso de criatividade pós ressaca, numa outra aula morta eu possa contar.
O importante é saber que Creuza desembarcou em terras parisienses. Depois de algum tempo conseguiu emprego de faxineira na casa de uma velhinha os arredores de Montmartre. Mas durante um ataque cardíaco da velha Creuza, no auge de sua ignorância completa do idioma de Molière, foi incapaz de chamar uma ambulância. Logo depois do velório a família decidiu que não deixaria nada para a pobre potiguar. Isso não foi problema, seus lábios carnudos, cabelos crespos e 103cm de bunda dificilmente vistos nas terras de Sarkozy rapidamente encontraram boas oportunidades.
Ela agora ganha a vida graças a seu corpo. Nada de prostituição, Creuza é modelo viva para todo tipo de artista em Paris. Pintores, escultores e poetas, muitos artistas da colina de Montmartre fazem fila para ter algumas horas com suas curvas estonteantes. Numa dessas passadas pelo recinto boêmio e Paris, Creuza conheceu seu conterrâneo do nosso grupo, logo ficamos todos amigos. Num nobre gesto de boa vontade, ela emprestou suas formas para a nossa escultura de neve. O resultado foi esse:






Né verdade, Cet Homme?
Era uma tarde quente na pacata Areia Branca, ela já era quase uma mocinha, a filha mais velha, do terceiro “casamento” de seu pai. O primeiro triunfo de uma sucessão de 3 abortos, culpa das doenças venéreas que seu pai adquiria constantemente em sua vida desregrada. Os braços do velho, cansado com as cordas da jangada, não mais suportavam o peso dos alqueires de feijão e farinha por isso seu pai achou que Creuza já poderia ser útil e carregar algum peso. No lombo de Quico, o meio de transporte da família de 4 que mais tarde viriam a ser 15, deixou a vila de pescadores e rumou para a feira do município. Seria a primeira vez que Creuza deparava-se com a cidade grande, seu ritmo frenético e centenas de objetos para os quais a pequena lombriguenta nem imaginava que poderia haver tantos nomes. Alguns deles eram enormes, maiores até que a jangada de seu pai, maiores até que a jangada de Buiú, a maior entre todas da pequena vila. Ela nunca havia sentido ganância, talvez nem mesmo hoje saiba o significado dessa palavras, mas pensou que poderia ter um exemplar de todos aqueles objetos. A miséria na qual vivia, porém, sempre fez com que se contentasse com pouco, sobretudo comida. Assim sendo acreditou que nunca poderia ter todos eles, mas pelo menos uma dezena daquelas maravilhas Creuza gostaria de ter.
Ao redor de um desses objetos, pessoas amontoavam-se. O sol ardia forte, atiçava ainda mais os piolhos que naquele início de Novembro pareciam ter atingido o apogeu da infestação. Curiosa com a movimentação de pessoas, Creuza pensou em verificar o que se passava, seria também uma ótima oportunidade de esfriar a moleira e os braços que a esta altura já suportavam alguns quilos de feijão verde, arroz e óleo. A iniciativa foi prontamente rechaçada com um coice de seu progenitor acompanhado de um ríspido “Avia, cabrita!”. Nuca entendera o motivo desse “cabrita”, nem de longe parecia com uma cabra. Creuza continuou caminhando mas seus olhos recusavam-se a deixar aquela aglomeração. Alguns passos mais adiante, uma oferta imperdível de guiné chamou a atenção de Seu Cleudir. Era a oportunidade pela qual Creuza estava esperando. Deixou a sombra do pai enquanto olhava constantemente de canto de olho afim de saber se este notara sua ausência. Meteu-se entre as pernas dos adultos que cercavam o grande objeto e rapidamente chegou à primeira fila.
O aparelho era caprichosamente ordenado com cabides e bombril, Creuza admirou a ornamentação por algum tempo, mais até que a imagem propriamente dita. Se um dia tivesse tantas coisas, Creuza queria ter um enfeite como aquele na sua porta para que todos vissem o quanto ela era caprichosa, ou melhor ainda, no alto de sua rede, para poder dormir olhando para o brilho cinzento que aquilo tinha. Tornou a atenção para as imagens em movimento logo abaixo dos cabides. Por algum motivo pessoas com muita roupa subiam num muro e tentavam derrubá-lo. Era um muro grande e cinza, as pessoas gritavam e dançavam forró. Pareciam estar todos felizes, não deviam gostar daquele muro, por isso fizeram um forró para derrubá-lo. Lembrou-se de algo parecido quando arrancaram um toco de mangueira que ficava perto de sua casa, todos os homens ajudaram com pás e enxadas, depois fizeram uma festa. Foi a primeira vez que ela provou cachaça, teve que fazer isso escondida pois seus pais não deixavam. Não entendia direito, se todos bebem, por que não ela? De qualquer forma, não gostou. Por algum motivo não se recordava muito bem do que se passou depois, mas lembrava muito bem que tinha um gosto amargo e queimava mais que malagueta, de uma forma estranha mas ainda assim queimava muito.
Seus pensamentos foram revirados e interrompidos por um grande cocorote que seu pai lhe dera, bem na hora que levantava o braço na tentativa de coçar a nuca ferozmente atacada pelos piolhos. O movimento dos braços mudava seu c.g. e fazia com que perdesse o equilíbrio, as lombrigas jogadas à frente serviam de contrapeso, poderia facilmente ter ficado de pé não fosse o cocorote. Seu Cleudir estava fumando numa quenga, já procurava por Creuza há alguns minutos por isso deflagara o cocorote mais potente jamais dado, “Avia, Cabrita!”. Creuza foi ao chão juntamento com os sacos e piolhos mas nem chorou, estava acostumada com as punições de seu pai, mesmo com as surras com o chicote de Quico. Recompôs-se em meio aos mais chulos xingamentos do pai, enquanto jurava a si mesma que um dia teria pelo menos uma coisa daquelas, com cabides, bombril e tudo mais. Jurou também que um dia saberia o motivo daquela festa no muro, perguntaria até mesmo a seu Buiú se necessário fosse, mas o tempo encarregou-se de minar essa curiosidade. Agora tinha que pensar como carregaria os quatro guinés que seu pai lhe arremessara na cara.
O primeiro desejo, porém, Creuza realizou. Em partes, é verdade, pois descobrira que os cabides e bombril não eram tão necessários e mudou seu gosto quanto a beleza dos mesmos. Creuza comprou sua primeira TV anos mais tarde, quando já morava numa cidade ainda maior. Longe dos cocorotes de seu pai e do chicote de Quico, Cleucilene foi trabalhar na casa de primos de Seu Buiú, gente muito boa, deram-lhe até um quarto para morar, pena que Xilito, o poodle branco e gasguito da família havia chegado primeiro. Mas deixavam até que ela ficasse com o troco do pão que comprava todas as manhãs. Depois de quase dois anos juntando esse troco, ela pode comprar a antiga TV de seus patrões. Agora era só dela, todas as 14 polegadas, só lhe faltava um botão de volume, mas quem precisa de um botão de volume quando se tem um palito de fósforo?
Através de sua Goldstar, Creuza pôde conhecer melhor o mundo, que era ainda maior que a distância entre Mossoró e Areia Branca. Acompanhava muitas novelas, filmes, só não gostava dos jornais. Além do mais, durante a madrugada, ajudava a abafar o som vindo do quarto dos patrões. Foi por causa de um filme desses que passam tarde da noite que Creuza teve que acordar e lavar seus lençóis escondida pela primeira vez. Demorou duas horas atrás da geladeira para secar. A admiração pelo mundo surreal da TV fez com que Creuza criasse muitos sonhos. O maior deles foi de viver numa outra cidade, longe dos despertar às 5:00 da manhã, dos trocos de pão e sobretudo, longe de Xilito.
Essa cidade chama-se Paris. É bem longe de Areia Branca, mais que Mossoró, na verdade é para o outro lado de Mossoró, entrando no mar, mas não é uma ilha. É tão longe que nem com uma semana de jangada com vento bom você conseguiria chegar. Só dá para ir de avião, e um daqueles bem grande mesmo.
Creuza conseguiu realizar vários de seus sonhos, até mesmo conheceu o Fábio Assunção. Com paris não foi diferente. Não me pergunte como ela chegou aqui, foi uma epopeia, com chifre de mulher em marido, envenenamento de Xilito, um malabarista de circo mal intencionado, obras de esgoto, um vizinho viado com medo de sapo e um repentista cego de um olho dentre outras coisas. Talvez num outro dia, num outro acesso de criatividade pós ressaca, numa outra aula morta eu possa contar.
O importante é saber que Creuza desembarcou em terras parisienses. Depois de algum tempo conseguiu emprego de faxineira na casa de uma velhinha os arredores de Montmartre. Mas durante um ataque cardíaco da velha Creuza, no auge de sua ignorância completa do idioma de Molière, foi incapaz de chamar uma ambulância. Logo depois do velório a família decidiu que não deixaria nada para a pobre potiguar. Isso não foi problema, seus lábios carnudos, cabelos crespos e 103cm de bunda dificilmente vistos nas terras de Sarkozy rapidamente encontraram boas oportunidades.
Ela agora ganha a vida graças a seu corpo. Nada de prostituição, Creuza é modelo viva para todo tipo de artista em Paris. Pintores, escultores e poetas, muitos artistas da colina de Montmartre fazem fila para ter algumas horas com suas curvas estonteantes. Numa dessas passadas pelo recinto boêmio e Paris, Creuza conheceu seu conterrâneo do nosso grupo, logo ficamos todos amigos. Num nobre gesto de boa vontade, ela emprestou suas formas para a nossa escultura de neve. O resultado foi esse:
Né verdade, Cet Homme?
 
 
