Então, chegara. A vaga não parecia muito apertada, logo, o pequeno carro entrou rapidamente entre o Fusion e o C4 que ocupavam os espaços laterais, que contraste. Perfeito! Ainda mais àquela hora. Olhou ao redor, nem sinal de flanelinhas, melhor ainda. Tratou de levar apenas o necessário, chave e alguns trocados. Travou o carro com a usual batida na porta, mais uma vez, não sabia para qual lado girar a chave. Para um lado, levanta a “maçaneta”, abriu, bate a porta outra vez, ainda não foi suficiente, abre, bate mais forte, gira para o outro lado,  “maçaneta”,  travada. Perfeito!
Dá a primeira esticada na coluna enquanto olha o movimento em volta. O calçadão está cheio, pessoas vão e voltam. Com cachorros, com crianças, turistas, vendedores, pedintes, início de noite normal. Pegou o mp3, que música estaria tocando? Olha a marquinha em cada fone: R, vai para a orelha direita, o outro nem era preciso olhar. Que economia de tempo! Play. AC/DC. Wow! Perfeito. Sentiu a música agitando seu cérebro, descia pela espinha e contraía os músculos. Nem precisara de aquecimento. Atravessou a rua com o pique de maratonista. Respirava forte e sentia o cheiro ar denso vindo do mar, certo que trazia também alguns odores típicos das redondezas mas algo aceitável.
Nossa, que disposição. Peito cheio, movimentos decididos, rápidos e cheios de energia. Olhava tudo em volta como procurando um reconhecimento por suas ações. Pisava firme, másculo, compassado com a batida da bateria. A guitarra acompanhava as vibrações do ar passando pela traqueia. Presumia que o boné impedia que as luzes dos postes iluminassem o rosto, contrastando com o branco da camisa. Esbanjava energia por onde passava. Subia a proteção dos bancos para ultrapassar velhinhos mais lentos a sua frente. Frequentemente recorria ao meio fio como rota de fuga aos retardatários. E as garotas? Nossa!! Várias de shortinho ou calça coladas, peitos seguros por suportes de lycra ou quicando dentro das blusas. Muitas também seguiam os ritmos dos mp3. Procurava adivinhar o que cada uma ouvia pela expressão nos rostos, mas não conseguia muito sucesso. Todas com olhares perdidos, voltados ao solo cujos pés pisariam dentro de instantes.
Não deu muita importância. Dentro de instantes alguém perceberia sua disposição e simpatia e finalmente poderia pronunciar as primeiras palavras do dia, não para um telefone, interfone ou meros bons dias de elevador. Seria conversa mesmo, quem sabe até flertes!? Continuava com passos firmes e velozes. Chegara ao refrão da primeira música e já havia coberto três quarteirões. Sim, esse era o clímax. Sim, ele era o cara!
Levantou o rosto e pode ver as luzes dos postes, seu rosto estava à mostra para quem quisesse fazer contato visual e reconhecer o bem estar que sentia com aqueles ventos cortando seu rosto a seis metros por segundo. Seus olhares abordavam as pessoas ao redor com um sorriso aberto e as maçãs do rosto arrebitadas quase cobrindo a base dos olhos, quem seria a primeira a cruzar olhares? 
O refrão acabara, e junto com o fim da música veio a dorzinha no canto da barriga. Dorzinha esta que, quando criança, ainda lembrara, chamavam de dor desviada e os mais sacanas puxavam para dor de viado. Após seus pensamentos deixarem a infância e voltarem à época atual, reparou algo. Ninguém reparava. Não olhavam, não percebiam aquele vigor e a felicidade por ter saído do espaço entre as paredes encardidas de sua casa. Pareciam não compartilhar da satisfação de ter ar novo nos pulmões. Tirou os fones e percebeu que ninguém ouvia AC/DC como ele. Era um misto de conversa abafada, carros passando buzina, vendedor de apito de gato, anúncio de dvd de palhaço em bicicleta. 
Logo parou de correr. Começou a caminhar assim como a maioria ao seu redor, um pouco mais rápido que todos, assim como suas pernas permitiam. Que bosta. Ninguém liga. Terminou o calçadão com Belle & Sebastian fazendo companhia monotonia de seus passos. Chegou à praça, sentou por um instante, tirou os tênis para livrar-se das pedrinhas incômodas. Pessoas conversavam sobre assuntos para os quais também não ligaria. Recolocou os tênis e pôs-se a caminhar novamente. Reparou então que quase todos caminhavam e conversavam com alguém, talvez por isso não o viam. Completou os três mil metros, tirou os tênis mais uma vez, livrou-se das pedrinhas e pôs-se a voltar para o carro. 
A essa hora já sentia sede. Avistou um isopor sobre um carrinho de mão, detrás dele saiu um senhor de meia idade e barba por fazer com boné de político, sem camisa e aparentemente sem cortador de unha. Intentou em pedir um coco mas seu olhar foi rapidamente arrastado para a cerveja. Quando o vendedor abriu o isopor, pensou em desistir, mas a expressão em seu rosto pouco demonstrava preocupação com aquilo. Em outras palavras, pensou: “Estou pouco me fodendo.”  Enquanto o vendedor procurava a flanela imunda, abriu a garrafa no braço esquerdo, colocou a nota de dois sobre o isopor e saiu. Quando o vendedor subiu seus olhos em sua direção, já estava a quatro passos de distância. Completou a caminhada até o banco mais próximo com a garrafa de cerveja, hora na boca, hora na mão direita.
Sentou-se e espantou os olhares de desaprovação com longos goles de Antárctica fria. Reparou que não muito antes, seus pensamentos recriminaram um careca barrigudo sem camisa que caminhava com um cigarro aceso na mão. Sentiu-se como ele e logo mandou os pesamentos passearem.
Jogou o casco vazio na lixeira e ficou esperando pelo barulho de garrafa batendo em outra. Em vão. Os garis tinham acabado de limpar as lixeiras da orla. Resignado com a perda desse último pequeno prazer, voltou para o outro lado da rua.
Tentou aproximar-se do carro sorrateiramente para despistar o flanelinha desatento na esquina. Em vão. Sem abrir os vidros, meteu-se rapidamente para dentro e pôs-se a ignorá-lo até que se mancou e foi cobrar de outro motorista. Vitória.